ATEÍSMO (MENOS) RADICAL
FOLHA DE S.PAULO, 03-12-2006
ATEÍSMO (MENOS) RADICAL
Marcelo Gleiser
Aos leitores que porventura estranharem o título desta coluna,explico: semana passada escrevi sobre o ateísmo radical de, entreoutros, Richard Dawkins, o biólogo e divulgador de ciência inglês quepublicou livros importantíssimos como "O Gene Egoísta" e "O RelojoeiroCego". Raramente abordo o mesmo tema duas vezes seguidas. Porém,recebi tantas mensagens de leitores a favor e contra que optei porfazê-lo.Antes, um breve resumo do que disse. Critiquei a postura de Dawkins, aquem admiro muito, por achá-la intolerante e radical. Dawkinsessencialmente nega a religião, considerando-a uma crendice absurda,que escraviza as pessoas. Ele não é o primeiro a afirmar isso.Lucrécio, poeta romano que viveu um pouco antes de Jesus Cristo,escreveu: "As pessoas vivem aterrorizadas porque não compreendem ascausas das coisas que acontecem na terra e no céu, atribuindo-ascegamente aos caprichos de algum deus".A razão, leia-se ciência, é a luz que ilumina o obscurantismo da fé.A maioria das mensagens que recebi defendem a postura de Dawkins.Guerra é guerra, e a religião está em guerra contra a ciência.Intolerância tem de ser enfrentada com intolerância. Em uma delas, SamHarris, outro autor que defende uma postura anti-religiosa radical, écitado: "a religião bate sem dó e quer ser tratada com luvas depelica".Eu sou um desses ateus liberais que Dawkins critica. Para mim, não háabsolutamente nenhuma dúvida de que o sobrenatural é completamenteincompatível com uma visão científica do mundo, visão que costumodefender arduamente.Conforme escrevi em várias ocasiões, o sobrenatural não faz qualquersentido: se algo ocorre, seja lá o que for, desde uma erupçãovulcânica a um suposto "milagre", esse algo passa a ser um fenômenonatural e, como tal, regido pelas leis da natureza. Quando as causasainda não são conhecidas, o dito fenômeno ganha um ar de mistério,criando espaço para o obscurantismo. Mas o fato de elas não seremconhecidas não implica que devam ser atribuídas a causassobrenaturais: o que a ciência (ainda) não explica não deve seratribuído a seres divinos cujas ações estão além da razão.A natureza é sutil; a elucidação dos seus mecanismos leva tempo erequer muita criatividade. O terror a que Lucrécio se refere vem dainsegurança causada pela submissão ao desconhecido: tememos o que nãoconhecemos. Numa era científica, esse terror não deveria existir.Se sou ateu; se fico transtornado quando vejo a infiltração de gruposreligiosos extremistas nas escolas, querendo mudar o currículo,tratando a ciência em pé de igualdade com a Bíblia; se concordo que oextremismo religioso é um dos grandes males do mundo; se batalhocontra a disseminação de crenças anticientíficas absurdas como odesign inteligente e o criacionismo na mídia; por que, então, criticoo ateísmo radical de Dawkins?Porque não acredito em extremismos e intolerância. Porque não vejo oradicalismo criar amigos ou novos aderentes, apenas mais inimigos eódio. Porque o extremismo é o pior dos diplomatas. Sei bem dopreconceito contra os ateus, preconceito que vem da crença absurda(popular em alguns países, como os EUA) de que só as pessoasreligiosas podem ser morais. É essa crença ignorante que deve sercombatida; ninguém precisa acreditar na Bíblia para saber que matar éerrado, se bem que esses ensinamentos são esquecidos na brutalidadeselvagem das guerras religiosas que pontuam a história. É a hipocrisiausada sob a bandeira da fé que deve ser combatida, não a fé em si.
MARCELO GLEISER é professor de física teórica do Dartmouth College, emHanover (EUA), e autor do livro "A Harmonia do Mundo" (i)
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ciencia/fe0312200601.htm
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